Quando Janaína Fellini subir ao palco do Itaú Cultural (hoje) e do Puxadinho da Praça (amanhã) para lançar o disco “Casa Aberta”, ela certamente se lembrará como aquela história começou. Porque não é uma história qualquer.
Janaina Fellini, 30, cantora e compositora, já havia lançado seu primeiro disco solo em 2012 e tinha uma carreira consolidada em Curitiba. Mas os contratempos inerentes à vida artística – à vida artística no Brasil – fizeram-na ir desanimando, pouco a pouco, até que um dia ela decretou assim mesma: chega. Foi morar em Aracaju. Mas aí um telefone do projeto Rumos, do Itaú Cultural, mudou tudo. Janaina então criou o projeto “Casa Aberta”, que previa uma residência artística entre ela, o produtor Beto Villares e o maestro Letieres Leite. “Me perguntavam de onde eu conhecia o Letieres e o Beto e eu respondia que não os conhecia pessoalmente, mas queria trabalhar com eles. Encontrei os contatos, liguei e eles embarcaram no meu projeto!”, lembra a cantora, que reuniu na mesma casa artistas que nunca haviam trabalhado juntos.
Foram 6 dias de intenso mergulho na música, e de lá emergiu “Casa Aberta”, o disco, com 10 canções. Dias antes do lançamento do álbum, Janaina conversou com o Azoofa o processo de criação dentro da casa, a convivência com Beto e Letieres e sua paixão pelo palco. “Por mim, eu faria shows todos os dias”.
AZOOFA: Há uma parte do seu release para a imprensa que diz: “até então, Janaina era uma cantora conhecida em Curitiba, tentando entender se deveria mesmo insistir na carreira artística ou arrumar outro jeito de ser feliz”. Como começou a sua carreira na música?
Janaina Fellini: Profissionalmente, em 2008, ano em que eu fiz o primeiro show da minha vida, no Teatro Paiol, em Curitiba. Era o projeto Mulheres e Canções, que durou até 2011. Mas considero que a convivência em família, na infância foi o verdadeiro disparador do meu desenvolvimento artístico. Sou do interior (Vitorino, a cidade onde eu nasci, tem 6 mil habitantes), e, na família do meu pai – de 15 irmãos – todos os homens tocam algum instrumento e todas as mulheres cantam intuitivamente. Minhas tias cantam lindamente! Ninguém nunca seguiu carreira ou estudou. Era uma manifestação musical natural de todos os encontros familiares. Algo que, de certa forma, eu absorvi primeiro como um simples prazer e depois, quase como uma missão.
Como veio a ideia de fazer uma residência artística com Letieres Leite e Beto Villares, que você até então não conhecia pessoalmente? O que te chamava atenção neles?
O trabalho do Beto eu conheço há mais tempo e eu sempre gostei. Foi amor de primeira ouvida. Nele eu vejo uma ousadia. Refinado nas escolhas dos arranjos, dos efeitos, na busca das sonoridades. Uma inteligência funcional característica de produtor musical. Letieres eu conheci pelo trabalho da Mariana Aydar e depois pela Rumpilezz. E nele me chamou a atenção o olhar vivo e ativo muito atento para buscar o que tem na raíz em termos de ritmo e de sonoridade e traduzir para a contemporaneidade. Esse diálogo que reverencia o que já foi feito, mas não é conservador, foi encantador pra mim. Letieres sempre deixou muito claro a vontade que ele tem de dialogar com os músicos da nova geração, argumentando que isso deixa a música dele sempre viva. É uma pessoa comprometida com a arte, com a musicalidade, com o desenvolvimento orgânico das propostas. Quem, se não alguém dotado deste olhar, toparia fazer arranjos ao vivo, sem conhecer os músicos previamente? E eu quis ouvir a sonoridade do encontro destes dois músicos incríveis!
E porque optar por uma residência?
Quando eu enviei o projeto para o Rumos, ele era um CD produzido como a maioria. Letieres mandaria os arranjos, nós gravaríamos e o Beto faria a pós-produção. À época, eu estava acessando alguns conteúdos de pessoas como Humberto Maturana, Jorge Larrosa, Ana Thomaz, Marina Abramovicz. Estava lendo O Conto da Ilha Desconhecida, do Saramago, subindo montanha, praticando yoga e tudo isso me provocou para um lugar de querer pesquisar mais sobre a potência que o encontro entre seres humanos gera e sobre o poder da arte nesse contexto. Música, diálogo, generosidade, convivência, geografia humana, a casa que eu sou todos os dias. E assim foi. Eu alterei a proposta com o apoio e paciência de toda a equipe do Rumos, reavaliei o orçamento, datas, enfim. Tudo pelo processo. E, hoje, nós temos nos nossos corações uma experiência de música viva e convivência que, eu tenho certeza, ninguém nunca vai esquecer.
Foram 6 dias numa casa no interior do Paraná. Como era o dia a dia de vocês? Que histórias você guarda desses dias?
Nossos dias eram primeiramente dedicados à música. Trabalhamos muito nesse período, especialmente o Letieres e a banda. Tínhamos uma casa de madeira onde o estúdio foi montado e 2 casas onde nós morávamos. Beto e Letieres, nossos convidados mais que especiais, eram os únicos que tinham quartos individuais. Café lá pelas 9 horas, depois estúdio com uma média de 3 ou 4 horas para a criação do arranjo e mais 2 horas para a gravação. Almoço delicioso com sobremesa – tínhamos uma chefe de cozinha maravilhosa – e depois retorno ao estúdio. Ao todo, em média circulavam pelas casas 25 pessoas por dia: equipe de registro, técnicos, preparador vocal, visitas, ajudantes, produção. No meio de tudo isso, pequenos problemas, grandes surpresas, muitas gargalhadas, histórias contadas e ouvidas com muita vontade, porque queríamos a cada dia conhecer mais sobre nós mesmos. Muita beleza natural e fatos inexplicáveis, como a luz que acabou depois de gravarmos a última faixa do disco (“Quem”) e mistério, como a presença do nosso fantasma predileto, o Batidinha, que vez ou outra atrapalhava as gravações dando 3 batidinhas no telhado da casa-estúdio…
Quais composições foram criadas durante a residência? Você levou pra lá ideias já mais ou menos desenhadas ou as músicas nasceram ali?
Durante a residência criamos a faixa “Árida”. Convidei Bernardo Bravo, Estrela Leminski e Téo Ruiz para trabalharmos na composição. O Beto estava lá também. Letieres e a banda? Adivinha? No estúdio gravando enquanto nós estávamos compondo… foi uma experiência em tempo real. A música nasceu à noite e no início da tarde do dia seguinte já estava gravada.
Não tínhamos tempo para realizar todo o processo desta forma. Eu levei 9 músicas para a residência, com a proposta de criar uma música lá. No processo, o repertório pediu (sim, ele tem vida própria) por 2 mudanças que emergiram do fluxo para onde as músicas já arranjadas tinham caminhado então entraram as faixas “Promessa” e “Quem”.
No release, você conta que estava num momento de desânimo em relação a música e se mudou pra Aracaju para ser balconista. Porque houve esse desencanto?
A vida de um músico, de um artista, é uma vida de muitas renúncias. E eu renunciei até onde me foi possível, pelo amor à música. Mas em um determinado momento eu senti que a forma como eu e a música estávamos nos relacionando não estava cumprindo o seu papel, que é um só: gerar vitalidade. A arte só tem esse papel. Seja pela beleza, seja pela provocação. Arte é vida e eu entrei em um movimento de esgotamento por conta das privações financeiras, do modelo de gestão da minha carreira, no qual eu fazia tudo sozinha, da política dos editais, enfim. Tem a ver com a vontade que eu sinto de não fazer parte do paradigma que atravessa a história dos músicos e da forma de experimentar essa musicalidade na vida.
Aracaju foi o meu melhor descanso. Lá eu tinha meu trabalho valorizado, podia pedalar, ver o mar todos os dias… Ali, vi minha vida do ponto de vista de um observador. Pude escolher estar em outro lugar de mim mesma. E na volta, arrumei um emprego em Curitiba, comecei a me organizar para fazer um intercâmbio e no meio disso tudo, recebi o convite do Rumos, que re-significou a música no meu cotidiano.
Sobre os shows: você toca hoje no Itaú Cultural e na sexta no Puxadinho. Como está sua expectativa para estrear nos palcos?
Não tenho expectativas. Aprendi isso ali na pergunta anterior. Tenho muita gratidão, uma alegria indescritível e uma certeza: eu tenho algo a comunicar. E é isso que vou fazer nestes e em todos os shows que eu puder.
O disco tem versões para canções de Gil, Alessandra Leão, Lucas Santtana… Como intérprete, o que faz você escolher uma canção para “chamar de sua”?
Quando ela vem, entra na minha “casa” e se acomoda como se dali nunca tivesse saído.
Com este projeto, certamente sua música está chegando e chegará a mais pessoas. Quais são seus planos daqui em diante?
Planos eu não tenho. Me sinto e sinto a vida muito móvel para planejar. Vontade eu tenho de estar no palco. Por mim faria shows todos os dias. Essa comunicação com o público é uma fonte de nutrição, de vitalidade, da maior importância. E eu, desde o dia em que o processo do disco Casa Aberta terminou – porque agora ele vai andar sozinho – eu só posso acompanhá-lo. E começo a ter ideias para o próximo trabalho musical.
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arte | belisa bagiani