O primeiro disco ao vivo de Beatriz Azevedo, “Antropophagia“, é o registro de uma apresentação que a cantora e compositora fez em Nova York, no Lincoln Center, em 2013. Mas a cidade que mais recebeu o show deste disco é São Paulo, a cidade onde Beatriz nasceu. “E isso é uma delícia, uma sorte e uma conquista”, diz ela. Já foram 5 shows na capital. A sexta apresentação acontece neste sábado, 24, no Sesc Ipiranga (saiba mais aqui).
“Antropophagia”, como o nome evoca, é uma atualização e uma ressignificação do conceito criado por Oswald de Andrade, um autor que caiu nas graças de Beatriz quando ela ainda era adolescente. Com o tempo, ela tornou-se especialista na obra do escritor, chegando a curadora do Encontro Internacional de Antropofagia. “A multiplicidade, o olhar sempre renovado para tudo e todos, a pluralidade que ele propõe, tudo isso me seduziu”, conta Beatriz, que também é poeta, atriz e diretora de teatro. “Oswald é um escritor libertador”.
Nesta entrevista exclusiva para o Azoofa, Beatriz fala sobre sua natureza multi-artística, reflete sobre a experiência de compor e diz que vai apresentar seis músicas inéditas no show deste sábado. “Sempre em movimento, não deixando estagnar nem as relações, nem as parcerias, nem a banda, procurando manter sempre tudo vibrante, renovado, inspirador”.
AZOOFA: AntroPophagia surgiu de um convite feito pelo evento Celebrate Brazil, em Nova York. Era pra ser apenas um show, mas você transformou em um projeto autoral? Como foi isso?
Beatriz Azevedo: O convite surgiu em Nova York, logo depois que eu me apresentei no CMJ Music & Film Festival. No CMJ, eu apresentei o show com o repertório do disco “Alegria”, meu trabalho anterior. Então, desde o convite, já havia a marca de um novo trabalho autoral, já que os curadores do Festival Celebrate Brazil disseram: você tem um ano para criar um novo trabalho, que deve estrear no Lincoln Center no próximo ano. Foi minha a proposta de criar o novo repertório em torno da Antropofagia, que já era meu tema de pesquisa, e sobretudo porque pensei em “celebrar o Brazil” a partir de uma perspectiva crítica e questionadora como é a da Antropofagia.
Você foi curadora do Encontro Internacional de Antropofagia, pesquisou a obra de Oswald de Andrade como bolsista da Fapesp e ainda criou o site antropofagia.com.br. Como surgiu e se desenvolveu sua admiração pelo movimento/manifesto?
Olha, desde a adolescência eu adoro Oswald de Andrade! Desde os primeiros livros e poemas que li, eu senti uma atração imensa por ele. Ele é lírico, apaixonado e ao mesmo tempo tem muito humor. Oswald é consistente, político, filosófico e muito anárquico, no sentido de não se fixar rigidamente em um só ponto de vista. A multiplicidade, o olhar sempre renovado para tudo e todos, a pluralidade que ele propõe, tudo isso me seduziu. Ele é um escritor libertador.
Daí a vida também conspirou muito a favor do desenvolvimento dessa paixão. Na adolescência, eu conheci a filha de Oswald de Andrade, bailarina, professora de dança e PHD em psicologia. Também fiquei fascinada por ela! Ela tinha filhas adolescentes também, da minha idade, mas naquela altura ela me disse: “minhas filhas não se interessam tanto pelo avô como você!”. A partir deste encontro, Marília de Andrade me deu diversos livros do Oswald que eu não tinha, algumas primeiras edições esgotadas na época, livros antigos e raros, presentes preciosos. Isso só fez aumentar minha conexão com os escritos de Oswald. Ao mesmo tempo, os herdeiros de Oswald assinavam uma parceria com a Unicamp, e seu acervo foi transferido para a universidade em que eu viria a estudar anos depois. Eu ainda nem tinha prestado vestibular, e de repente, já tinha acesso aos manuscritos de Oswald! Então sou muito grata às oportunidades da vida… Na verdade meu “radar” estava funcionando super bem desde criança! De alguma forma eu me atraí por alimentos essenciais para minha formação, como Oswald de Andrade, Hilda Hilst… Quando conheci o Zé Celso Martinez Correa, no primeiro ano da faculdade de Artes Cênicas, eu já lia e mergulhava em Oswald de Andrade há 5 anos, já tinha lido quase a obra toda; e mais: tinha acesso a manuscritos inéditos.
Imagino que também foi esse diferencial que fez com que, ainda garota, de repente eu me visse amiga e dialogando com artistas muito mais vividos e experientes que eu. Isso assustava minha mãe… (risos). Ela ficava preocupada por eu ter amigos tão mais velhos que eu, e todos muito transgressores…. Mas, realmente, nessa fase, a maioria das pessoas da minha idade estava vendo a novela das seis e eu não tinha o menor interesse por isso.
Muitos anos depois, o fato de ter sido convidada a assinar a curadoria do Encontro Internacional de Antropofagia foi um resultado natural de anos e anos de estudo e interesse real pelo tema. A criação do site foi movida pelo desejo de compartilhar parte desta pesquisa.
Que tal a experiência de compor a partir de um conceito artístico? Quero dizer: você tinha um norte, uma “orientação”, que é o manifesto e o que ele representa. Como foi compor dentro desse “limite”, digamos assim?
Foi um exercício fantástico! Eu gosto dessa perspectiva de ter um norte, e ao mesmo tempo me sentir totalmente livre para experimentar. Então, no disco, você pode ouvir ao mesmo tempo músicas que foram compostas a partir de textos de Oswald, e em vários momentos você percebe a conexão explícita com o referencial do autor; por outro lado, há momentos em que a conexão com o universo da antropofagia é mais sutil, fluida, diagonal… Nem sempre o mote da Antropofagia aparece de maneira explícita.
Exatamente porque tenho muita intimidade com o tema e o autor, me sinto totalmente livre para me apropriar desta fonte com liberdade. Em nenhum momento eu pensei “tenho que fazer isso, tenho que fazer aquilo”. Eu fui criando e brincando com o tema e com as experiências que eu estava vivendo naquele momento. Minha antropofagia do século XXI tem Nova York e tem os Tupinambá; tem Maxixe, Jongo, tem Jazz, tem Piazzolla, Jobim, Cole Porter, Hilda Hilst, Beatriz Azevedo e Angelo Ursini, meu parceiro de São Paulo e o mais jovem da banda. A Antropofagia para mim é um alimento, não uma prisão. Antropofagia é janela aberta para o mundo e para dentro de nós.
AntroPophagia é teu primeiro disco ao vivo. Atualmente, quem mais lança discos assim na música brasileira são os artistas sertanejos ou de pagode. A MPB se distanciou deste tipo de registro, exceto quando há um selo “acústico” ou com algum canal de TV apoiando. Como foi o desejo e a decisão de registrar esse show?
Hahahaha…. eu não tive nem desejo nem decisão de registrar o show! Isso é o melhor de tudo. Fui com minha banda para Nova York, para estrear o show no palco do Lincoln Center. Seria até “pretensão” nossa se houvesse a proposta de registrar o show justo na estreia. Nunca havíamos tocado aquelas músicas em público, a banda tinha ensaiado pouco, estávamos cansados da viagem… Enfim, tudo isso para explicar que não havia, de jeito nenhum, a menor pretensão de gravar o show ao vivo na estreia em NY. O que aconteceu é que o engenheiro de som do Lincoln Center, Justin, sozinho, por livre espontânea atitude, resolveu, na passagem de som, que iria gravar o show. Mas ele não nos contou nada. Nem eu nem os músicos sabíamos de nada. Hoje eu acho o Justin simplesmente um gênio! Se ele tivesse contado pra gente, teria estragado tudo. Ou não teríamos concordado, dizendo a ele que era a estreia, que precisaria amadurecer mais pra ser gravado, ou se topássemos, teríamos ficado mais nervosos, tensos com a responsabilidade de tocar ao vivo e ao mesmo tempo gravar um disco! Ele foi sábio. Eu amo pessoas que tomam atitude, que tem coragem, que pegam nas próprias mãos o movimento da vida, que não deixam passar as oportunidades, que estão ligados no momento presente. Enfim, são pessoas assim que movem o mundo… Por essa atitude afirmativa dele perante a vida, nós ganhamos um primeiro disco ao vivo, gravado em Nova York, de presente!
Depois voltei ao Brasil, mostrei o áudio pra Olívia Hime, e ela encampou o projeto e lançou o disco pela gravadora Biscoito Fino. Lembro até hoje da escuta sensível de Olívia: “Ficou lindo esse arranjo, você relê Jobim em tango, coloca mais densidade neste clássico, mas canta com toda suavidade do mundo; esse contraste de atmosferas é muito rico”. De novo, eu só tenho a agradecer às conexões que a vida me proporciona. Gente sensível e inteligente como Olívia, gente corajosa e generosa como Justin, gênios como Zé Celso, Hilda Hilst… Todos eles são faróis acesos nesta caminhada.
A Beatriz cantora e compositora é muito diferente da Beatriz atriz ou da Beatriz poeta? Você sente que seus trabalhos se relacionam ou enxerga uma diferença de “personalidade” quando você troca de arte?
Eu sou sempre a mesma pessoa, mas sempre outra! “Ainda que se mova o trem, tu não te moves de ti”. No fundo, me sinto sempre como a poeta que mergulha em busca de experiências, de contato com o mundo, de troca afetuosa com o outro. Os trabalhos se comunicam muito, se potencializam exatamente nesta experimentação de linguagens. Cada vez mais me sinto musical quando escrevo, me sinto poética quando componho ou arranjo, me sinto num rito teatral quando canto… No fundo, todas as linguagens artísticas existem para nos mover, nos comover, nos fazer movimentar nossas percepções de mundo, nossos questionamentos pessoais mais profundos, para compartilhar a experiência de estar vivo neste momento. Eu sou uma pessoa sem fronteiras, nesse sentido. Não sou apegada. Sou conectada e fiel às pessoas, às relações, a arte, a criação, a mim mesma, ao caminho de desenvolvimento existencial e artístico, mas não me aprisiono aos formatos pré-estabelecidos. Sempre há espaço para recriação, para o fluxo da vida, para a abundância da natureza, que é muito mais potente do que tudo. Nesse sentido, não sou nada apegada aos rótulos, a ser “atriz”, “cantora”, “poeta”, “diretora teatral” etc…Nunca dei bola para isso. Vou vivendo e criando! E para viver e criar, experimento em todas as linguagens e me sinto sempre inteira. Escrevi uma música chamada “Sem Fronteiras” que tem este verso: “viajar sem passaporte, ser estrangeiro e não perder o norte”. É a minha cara.
Eu acho muito interessante como você assina algumas músicas em parceria com Maiakovski, Raul Bopp ou com o próprio Oswald. Como se dá essa “parceria” musical entre você e estes grandes pensadores/escritores?
Depois de muitos anos de “convivência”, de ler os poemas destes autores, de me conectar com o universo particular de cada um, de sentir as dores e as belezas dos amores destes poetas, acho que me sinto íntima deles. Os poetas que eu amo viram meus melhores amigos! Assim, eu consigo compor com eles, escrever música para versos deles, com a maior fluidez e naturalidade. Penso que também que, pelo fato de eu escrever letra e música – ou seja, não fico fixa numa só posição – me sinto confortável jogando em qualquer posição, e quando vou compor com outros poetas, me sinto natural. É como se fosse “tudo nosso”, me aproprio da voz deles, passo a ser a voz deles, e me digo através deles, como me diria se eu mesma tivesse escrito aquilo. Talvez nesse ponto o exercício de atriz colabore. Você precisa dar vida ali no palco à vida de outras pessoas, e o público que vem compartilhar esse rito precisa acreditar, sentir que você é você, e é outra, ao mesmo tempo! Aí está a magia da criação. Como diz Rimbaud: “Je est un autre”. Eu não “represento”, eu sou.
Vinicius Cantuária é um parceiro recorrente na sua carreira, e ele volta a aparecer neste projeto. Como é a relação entre vocês?
É uma relação maravilhosa, de amizade e parceria. Nós nos conhecemos em Nova York, veja você: é preciso ir longe para ficar perto. E as distâncias na verdade não existem. Eu confio no Vinicius, eu gosto da vibe dele, admiro profundamente a musicalidade, a inteligência brejeira desta pessoa! Vinicius é um cara generoso, amigo, parceiro, no sentido mais bonito da palavra. Já fizemos várias músicas juntos, e continuamos a criar, sempre. Agora mesmo, neste show de sábado, vou apresentar uma nova parceira nossa, inédita, que eu escrevi em francês para uma melodia linda e refinada do Vinicius.
Você é paulistana. Como é se apresentar na cidade?
Adoro São Paulo. Como já vivi em várias outras cidades no mundo, aprendi a valorizar o que cada uma tem de melhor. A pluralidade de São Paulo é imbatível! O profissionalismo. A seriedade. A sinceridade. Ela não é uma cidade hipócrita, ela diz a real. As outras cidades ficam parecendo províncias ou balneários perto de São Paulo. Tenho amigos de muitos anos em São Paulo, meus irmãos, minha família. Adoro apresentar meu trabalho na cidade em que nasci. Esse será o sexto show antroPOPhagia que apresento esse ano em SP, uma delícia, uma sorte, uma conquista!
Queria que você falasse sobre o show de sábado. Quem é a banda que estará contigo?
A banda tem amigos e parceiros de longa data, e sempre abro espaço para novas pessoas, novos artistas. É da minha natureza acolhedora e plural. A formação atual inclui Angelo Ursini e Maurício Chiari, que tocam comigo há muitos anos e que gravaram o disco ao vivo em Nova York. No baixo, desta vez, temos o Reston, que nos últimos shows havia tocado também piano. O Maurício Calmon é baterista e também pianista, e neste show ele toca teclado. Eu digo que só toco com músicos multi-instrumetidos! A Thaiana toca percussão e faz os vocais, e é a primeira vez que tocamos juntas. E o Jaques Morelenbaum é convidado especial, nosso mestre, toca o violoncelo mais brasileiro e original do mundo. Já tocamos algumas vezes juntos neste show antroPOPhagia, eu sou fã do Jaquinho! E sobretudo: além da musicalidade, ele embarca nas propostas, ele é ousado e livre, toca de havaianas e urucum na cara, é artista no sentido profundo da palavra.
E como você vê a evolução do espetáculo desde o lançamento até aqui?
A evolução do show é porque sempre estamos inventando, tanto nos arranjos, na performance, como no próprio repertório. Quem for neste show agora vai escutar mais seis músicas novas, que não estavam na estreia. Nos últimos tempos, criei várias composições novas, tanto sozinha, assinando música e letra, tanto com diversos parceiros. Há uma música nova, inédita, que fiz com a Zélia Duncan. Há outra inédita em parceria com Vinicius Cantuária. Há uma parceira recente que fiz com uma compositora carioca, Ana Clara Horta. Ontem, no ensaio, o Ângelo disse: “Bea, precisamos fazer mais, vou te mandar uma safra nova”. O Chiari me deu também uma música incrível que estou escrevendo a letra. E assim vamos, evoluindo, sempre em movimento, não deixando estagnar nem as relações, nem as parcerias, nem a banda, procurando manter sempre tudo vibrante, renovado, inspirador. Não sou “conservadora”, não mantenho as coisas, os formatos, as relações, as pessoas, por conveniência nem por acomodamento. A estagnação mata a possibilidade da surpresa. O apego é sufocante e medroso. Quem quer muito “conservar”, acaba na verdade destruindo, se conectando mais com o passado do que com o fluxo da vida, presente, livre e inesperado. A banda precisa estar viva, a música precisa estar pulsando, as amizades precisam ser alimentadas, os amores precisam ser regados e cuidados com liberdade. Eu gosto da vida, viva. Bem viva.
Se Oswald de Andrade te inspirou a compor, quem é o compositor que te inspira a escrever?
Ótima pergunta! São alguns… Eu adoro ouvir Piazzolla e Villa Lobos. No geral, para escrever, escuto música instrumental, tanto “erudita” como jazz, cubana, francesa, africana, brasileira. Até para aguçar e refinar as percepções abstratas que a música coloca em movimento, as sensações profundas que a música faz vibrar. Se vou escrever, prefiro que a música não tenha letra, exatamente porque preciso de algum “vazio”, de algum “silêncio”, de algum espaço aberto para a minha criação. Indo mais longe, aprofundando mais, em todas as direções e sentidos. O compositor que mais me inspira a escrever é o silêncio.