Joana tinha não mais de 7 anos quando conseguiu entrar em um dos quartos da sua casa que sempre ficava fechado. Lá dentro, descobriu um mundo até então desconhecido: o dos instrumentos. Foi a partir dali que ela começou a tocar. A voz, no entanto, só se revelaria instrumento mais tarde, na adolescência. E foi na faculdade de teatro que ela resolveu que a música ocuparia lugar central na sua vida.
Agora, prestes a completar 34 anos, Joana lança seu primeiro disco,“Indivíduo Lugar”, produzido por Manoel Barenbein e que apresenta 8 faixas, sendo 4 escritas por ela (ouça o disco). Ela lança o álbum nesta sexta-feira, no Sesc Pompeia – saiba mais sobre o show.
Com exclusividade para o Azoofa, Joana – que é instrumentista, produtora, técnica, designer sonoro, compositora e cantora – fala sobre ser artista em tempos políticos sombrios, o processo de gravação do álbum e o machismo dentro do mercado musical. “Ainda colocam a mulher num espaço mítico de diva, que apenas canta”.
AZOOFA: Joana, como começou sua relação com a música?
Joana Flor: Minha mãe é cantora e, em casa, a música sempre foi tratada como algo muito importante na formação do indivíduo. Eu gostava de ouvir os discos dela, Led Zeppelin, Beatles, Milton Nascimento e Egberto Gismonti. Meu pai tinha uma coleção de instrumentos num quarto que ficava fechado, pois eu, criança, poderia quebrar algum… Quando eles saíam eu dava um jeito de entrar lá e tocava todos, mas o violão era meu preferido! Isso eu tinha uns 6, 7 anos…Um dia minha mãe descobriu e resolveu chamar um professor de violão. Quando ele chegou, eu já pegava o violão e tirava um som, por isso ele manteve o meu jeito canhoto de tocar. Eu estava tão familiarizada que não valia a pena me forçar a tocar como destro. Invertemos as cordas e eu me apaixonei pelo instrumento.
E em que momento você enxergou que ela seria sua profissão?
Desde pequena eu me imaginava, principalmente quando estava no banho, no palco cantando e tocando guitarra, fazendo solos. Eu estudava numa escola que tinha aulas de música, desenho e teatro como obrigatórias, com a mesma importância que as outras matérias. E minha primeira relação com o palco foi no teatro. Achava que seria atriz e fiz teatro muitos anos, mas sempre estudando violão paralelamente. Houve um momento em minha vida que tive muitos problemas de rouquidão, voltava da escola rouca e descobri dois calos nas cordas vocais. Foi então que minha mãe me pôs no canto lírico. Os calos regrediram e eu descobri o prazer de cantar. Eu já escrevia poesia desde os 10, 11 anos, e fazia umas músicas. Com 15 anos formei minha primeira banda, Teto Preto, que depois mudou pra Corpo Delito. Éramos um trio e tocávamos músicas nossas. Eu cantava e tocava guitarra e nos apresentávamos em pequenos lugares do Rio, tocávamos de hardcore à bossa nova. Éramos estranhos. Nesse momento comecei a compor mais e dar mais atenção à ação de compor, escrevia muito e sempre que dava musicava o que escrevia. Ainda achava que seria atriz, mas comecei a me interessar em fazer as trilhas das peças que participava e cada vez mais eu fazia a parte musical também. Com 16 anos fiz uma performance de música e poesia no Baixo Gávea e foi a primeira vez que apresentei minhas composições na voz e violão, dando mais valor às letras. A partir daí comecei a mostrar minhas músicas em festas do teatro e tinha um feedback muito positivo.
Quando entrei na UNIRIO em Teatro, juntei com uma percussionista que estudava lá também e começamos a tocar em barzinhos de Santa Tereza. Depois, comecei a ganhar dinheiro tocando em barzinhos, sambinhas e bossas e no meio sempre incluía minhas composições. Cada vez mais queria fazer a parte musical das peças e já não queria tanto ser atriz. Me interessei por percussão, entrei na bateria feminina da Escola Villa Lobos e tocávamos no carnaval em blocos e chegamos a tocar na Marques de Sapucaí. Então tomei a decisão: não seria mais atriz, trabalharia com música e me foquei nisso. Foi quando fiz minha primeira grande tatuagem no antebraço, quando assumi que não seria mais atriz, mas musicista. A partir daí comecei a pesquisar outros instrumentos e segui estudando de forma autodidata.
Como foi a experiência de idealizar e gravar este seu primeiro disco, “Indivíduo Lugar”?
Eu já havia gravado 2 EPs e alguns singles, mixado e participado da masterização de todos, tinha me formado em produção musical na Anhembi Morumbi e tava bombando nas técnicas de mixagem e gravação. Quando fui gravar este disco, eu estava com um know how e um amadurecimento que me permitiram aproveitar ao máximo essa experiência. Assim ficou mais fácil concretizar aquilo que eu havia pensado. Cada música era pensada antes conceitualmente, e na pré-produção feita no meu home estúdio, ia gravando os instrumentos que havia idealizado. Muitas gravações da pré-produção se mantiveram originais no produto final. Isso tem sido cada vez mais comum pra mim. Quando vou gravar à vera, faço alguns takes e no fim fico com aquele que fiz sem pretensão, improvisando, de prima.
“Indivíduo Lugar” tem 8 faixas, sendo 4 versões e 4 canções de sua autoria. Porque decidiu dividir assim? E porque deixar as versões no “Lado A”?
A idéia foi do Manoel. Ele quis deixar as releituras no início do disco. Tem a ver com a experiência dele, uma forma de chamar a atenção de quem nunca ouviu falar de mim. Mas a estória de lado A e lado B, foi percebida depois. Fiquei com o lado B e adorei, sempre gostei do lado B dos discos, me sinto honrada.
As tuas versões tem em comum essa vontade de desconstrução do original, e de levar a composição para novos lugares. Como é esse processo?
Quando fomos escolher o repertório pro disco, o Manoel me indicava músicas que achava que tinham a ver comigo. Essa desconstrução é uma consequência da adaptação da música pro meu jeito de cantar, pros instrumentos que eu toco. É o que acontece em “A Rita”, do Chico Buarque, uma música que cantei muito em barzinho, e com o tempo ela foi se adaptando ao meu cantar mesmo mantendo o arranjo de samba. Quando resolvemos fazê-la, eu fiz o caminho contrário. Ouvi minha voz cantando-a e percebi que tinha um rock and roll ali no fundo. Sem contar que a letra me trazia um certo caráter de indignação, afinal a Rita deixou mudo o violão, isso não se faz. Essa indignação virou guitarra, virou rock.
O Manuel Barenbein é uma figura importante da música brasileira, que trabalhou com o próprio Chico, com Caetano Veloso e outros, e que andava um pouco afastado do ofício de produção musical. Como foi trabalhar com ele? E o que você acha que foi a maior contribuição dele para o disco?
Foi incrível, ele é uma pessoa extremamente generosa e aberta pro novo. Ouviu a acatou todas as minhas sugestões, e ao mesmo tempo sempre tinha um comentário delicado que fazia toda a diferença na música. Eu diria que era assim: eu escolhia o tipo de pedra e ele fazia a lapidação. Uma coisa não anda sem a outra. Em todas as músicas, sua lapidação está presente, em algumas mais, como em “Cores”. Essa era uma música minha que apresentei a ele numa forma mais rústica, um xote meio fado com umas guitarras, muitos instrumentos, e quase não dava pra prestar atenção na letra, que pra mim é uma das coisas mais importantes dessa faixa. Ele veio com essa ideia de assumir o fado, diminuir o andamento, violões e trouxe a cereja do bolo, que é a guitarra portuguesa. Quando terminamos as gravações e comecei a editar cada instrumento, percebi o salto quântico que a musica tinha dado. Um instrumental singelo e forte ao mesmo tempo, e a letra saltou aos ouvidos.
O disco tem 8 faixas e ouvi-lo não leva mais de 30 minutos. Você acha que discos mais curtos ajudam na assimilação pelo público, nesse momento em que somos bombardeados por informações o tempo todo?
Eu tenho essa impressão de que os discos estão ficando mais curtos, as músicas também, não se vê tanto músicas de 8 minutos como havia antes. Não há como negar a impressão do passar do tempo mais rápido, e acho que isso tem a ver com a quantidade sim. Mas não sei se a assimilação fica mais fácil por ser mais curto, eu diria que dá um gostinho de quero mais. Quando ouço esse disco, sempre que termina eu penso: ah, que pena! E ponho pra tocar novamente… Talvez se fosse mais longo, eu trocasse o disco. Acho que estamos mais sem paciência para informações, mas sinto que quando nos interessamos por algo, acabamos por esquecer dessa pressa.
Você deixou o Rio de Janeiro em 2004 e se mudou para São Paulo. Porque? E como é a tua relação com as duas cidades?
A primeira vez que vim à São Paulo eu tinha já uns 17 anos. Eu me apaixonei pela cidade. O que mais me chamou atenção foi a diversidade das pessoas. Na rua Augusta, por exemplo, você vê punks, famílias, velhinhos, senhores e senhoras distintas, gays, grunges, enfim, todos convivendo de certa forma. Ninguém fica te olhando, te sacando, e acho que isso é uma características das cidades cosmopolitas. E o Rio é uma cidade mais provinciana, as pessoas gostam de olhar, e como é uma cidade de praia, existe um certo way of life que se embrenha nas pessoas. Claro que estou falando do Rio Zona Sul, a Zona Norte é um outro Rio, assim como a Oeste, mas vivi na Zona Sul perto da praia e vivi muito esse way of life. Fui surfista grande parte da minha vida e amo o mar, mas sempre senti falta da liberdade de comportamento. No Rio você tem guetos: se você é punk, vai à bares punk; se você é gay, vai à lugares que chamávamos GLS. Em Sampa não é assim. Você vai na padaria, e tem todo tipo de gente. Não precisa do aval de um lugar pra ser quem você é. Eu precisava disso. E encontrei isso aqui. Sinto falta da beleza do Rio, do mato, cachoeira, do mar, das montanhas, isso é algo insubstituível. Mas São Paulo me ajudou a me encontrar como sou e me assumir cada vez mais eu mesma.
Recentemente fiz uma matéria com produtores musicais, e percebi que eu não conhecia nenhuma mulher que trabalhasse nesta área. Porque há tão poucas mulheres nesta função?
Bom, isso é uma pergunta que vale pra muitas outras funções. Eu percebo que a mulher, na música popular principalmente, ocupa ainda um espaço mítico de diva, da cantora, que apenas canta, e que por trás dela estão os arranjadores, os músicos etc. É um espaço mítico mesmo. É difícil ver as pessoas chamarem uma mulher que seja instrumentista e cantora de “instrumentista” – ela será antes cantora. Isso acontece comigo. Além de cantora, sou instrumentista, produtora, técnica, designer sonoro e compositora, mas esses termos são sempre omitidos, viro cantora, apenas. É uma profissão machista, sim. Eu trabalho com uma mulher, técnica de som, que é maravilhosa e supersensível, ela sofre muito no meio pois sempre tem que pôr “o peito na mesa” e convencer os caras de que é competente. Eu vivo isso também. Realmente há uns anos atrás não se ouvia falar de produtoras musicais. Mas elas estavam lá. Hoje temos muitas produtoras musicais, mas esse termo é muitas vezes escondido e substituído por cantora. Posso citar uma produtora, instrumentista e cantora bem famosa, mas que ninguém imagina que seja produtora musical: a Lady Gaga. Pode ser estranho eu falar dela, mas a imagem que nos chega dela é de uma cantora sexy que faz clipes com pouca roupa. Mas é uma cantora muito competente, compositora, instrumentista e produtora também. Ouso arriscar que deve conhecer técnicas de mixagem. Aqui no Brasil conheço algumas mulheres produtoras, mas é claro que não se ouve falar…ainda vivemos em tempos machistas, infelizmente, mas estamos caminhando.
Por fim: muitos artistas temem que, pelo momento político que estamos vivendo, o número de shows e a própria atenção do público diminuam, já que a todo momento surgem novas histórias, e ainda tem a crise deixando todo mundo preocupado. Pra você, como é ser artista nesse momento?
Eu não posso deixar de ser aquilo que sou. Eu escrevo, componho e quero sempre cantar. Tenho consciência de que um mundo com questões urgentes não tem atenção para coisas básicas da alma, como arte. Podemos entrar num longa discussão de valores, pois eu pessoalmente entendo que não só o Brasil, mas o mundo está carente de arte. E arte no sentido individual: achar sua arte, sua potência criadora, seja a sua profissão a que for. Diante dos acontecimentos no Brasil, eu tenho mais esperança do que medo. Entendo que para as profundas transformações no cenário politico e social seja necessário “morrer para nascer de novo”. Sou totalmente a favor da democracia, por isso não acredito no impeachment, apesar de não compactuar com o atual governo. Mas vejo esse momento paradigmático na política e no mundo como uma oportunidade de mudança, e ser artista agora me parece mais fortificante do que quando se vive num marasmo político e cultural como estamos vivendo há algum tempo (sem desmerecer todos os grandes artistas que nos presentearam com seus legados durante esse período). Mais do que nunca me sinto viva e com vontade de mostrar meu trabalho, sinto vontade de levar minha música onde não há palco, sinto tesão de existir como artista, principalmente por vivermos agora essa crise e essa iminência de queda da democracia. Nesse sentido, enxergo com olhos de budista: vejo as dificuldades e obstáculos como grandes oportunidades, e isso é que vejo, uma grande oportunidade. A arte é um caminho difícil, mas extremamente gratificante.
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arte | marina malheiros