Falar que 2016 foi um ano esquisito – algo, aliás, sobre o qual o Spotify se apropriou de maneira genial em sua mais recente campanha publicitária – já virou um chavão, tanto quanto vai se tornando lugar comum classificar este ano como um dos mais profícuos para a música brasileira.
As listas de final de ano sempre estão aí pra nos deixar a par dos mais relevantes lançamentos do ano. Mas aqui a gente sempre tenta fugir do esquemão “50 melhores discos”, etc, e dessa vez resolvemos convidar quem mais entende de música nesse planeta: os músicos. Convidamos 23 artistas para guiarem nossos ouvidos rumo aos novos sons.
Cada um dos participantes foi convidado a responder a seguinte pergunta: qual foi o melhor disco de 2016 e por que? Valia álbum nacional e internacional; valia responder mais de um também, claro, porque música é emoção, e às vezes o coração não é o melhor jurado.
Com vocês, os melhores álbuns de 2016 do Azoofa.
A ESCOLHA DE ANA CAÑAS
Pra mim, o grande disco do ano é o ‘sabotage’. O cara é um mito, uma lenda. Uma voz que transcendeu o gênero. Real, um corte vívido. Um gênio. Poeta dos mais finos. Acho que o álbum resgata a importância das suas colocações e críticas, mas, mais que isso, demonstra a atualidade – infelizmente – das questões que ele traz em seu discurso. Um disco atemporal, urgente, muito bem produzido e pensado.
A ESCOLHA DE DANIEL GROOVE
Pra mim, o grande disco de 2016 é “Cine Ruptura” de Saulo Duarte e a Unidade. Saulo é um grande talento e como todo jovem artista busca seu lugar no mundo, mas se no primeiro disco (Saulo Duarte e a Unidade, 2012) ele se mostra um grande compositor de canções e no segundo (Quente, 2014) ele parte a procura de suas raízes mais profundas, é em Cine Ruptura que ele parece encontrar mais que um lugar no mundo e sim um mundo no seu trabalho. Alimentado pela qualidade das parcerias, pela fina produção de Curumim e com uma banda engajada e super afiada o álbum explode em movimento e energia o que só fortalece a unidade.
A ESCOLHA DE LA BAQ
Pra mim foi “Princesa”, da Carne Doce. Eu lembro de ouvir falar pela primeira vez desse nome e pirar já aí, daí pra ouvir o disco foi saciar uma expectativa já criada. As guitarras protagonizam ao meu ver e eu amo discos guitarristicos, com um bom gosto foda, mas tomam a frente também as letras. Acho a Salma Jô uma força descomunal, escreve do sutil ao pé no peito sem perder a pose, melodias do âmago, falam do que precisamos falar sem esconder atrás de subjetividades, eu amo isso, acho difícil demais fazer sem ficar chato de ouvir. Pareço uma tiete que não consegue citar nada desse disco sem ser superlativo mas é isso mesmo, sou tietezona assumida.
A ESCOLHA DE FERNANDO MARANHO
Estava precisando ouvir algo novo com aquela urgência que às vezes vem com tudo. Entrei em uma lista com uns 50 lançamentos do mês no site TMDQA e resolvi escutar tudo o que tinha lá. Um a um. Separei um punhado de bandas que gostei e, entre elas, uma que me fez sentir um negócio meio estranho. Sabe aquelas bandas antigas você adora mas que não consegue admitir a ninguém que ouve? Ah! Vai me dizer que não escuta A-ha, Bon Jovi ou Guns’n’Roses escondido por aí?! O Into It. Over It., a princípio, fez me sentir dessa maneira. Na primeira audição a palavra “EMO” pipocava na minha cabeça. Mas, assim como disse Gilberto Gil ao ser questionado sobre o Axé da Bahia no Roda Viva, “se meus ouvidos gostam do que ouço, por que raios eu vou deixar de escutar por algum preconceito qualquer?”. Desse modo, deixei meus ouvidos decidirem mais uma vez o que eu devo escutar ou não (para minha sorte). Na segunda audição, os vocais melodiosos, guitarras com afinação aberta, linhas de baixo e, principalmente, a bateria de Standards me pegaram de jeito. Posso dizer que é um dos poucos discos que me chamaram atenção pela bateria, por sinal. E, como baterista frustrado que sou, meu sonho atual é um dia conseguir tocar como Josh Sparks em Standards. Então, por todas essas questões que fogem à normalidade e nos trazem aquela sensação boa de novidade à alma, Standards do Into It. Over It. é o meu disco do ano.
A ESCOLHA DE LAURA WRONA
Esse ano foi cheio de lançamentos ótimos mas, para escolher meu disco do ano, pensei no que mais escutei ao longo de 2016. Lançado em janeiro, o álbum Moth, da dupla americana Chairlift tocou inúmeras vezes nos meus fones e foi trilha sonora de muitas viagens, já que peguei bastante estrada neste ano. Sou apaixonada pela voz da Caroline Polachek e o pop feito por ela e Patrick Wimberly é cheio de detalhes e texturas que me levam a ouvir cada faixa diversas vezes para prestar atenção em todas as nuances. O disco apesar de ser bem pop, tem uma atmosfera fora do comum. Recentemente eles anunciaram o fim da banda então esse disco é o último registro da dupla.
A ESCOLHA DE CHINA
Difícil responder sobre um disco, já que esse ano tivemos lançamentos incríveis, cada um com seu som, do seu jeito, mas acho que o disco de Zé Manoel, “Delírio de um romance a céu aberto”, é um lançamento importante pelo seguinte: Zé é um jovem e excelente compositor, que teve suas canções interpretadas por grandes nomes da música brasileira, como Fafá de Belém, Elba Ramalho, Juçara Marçal. E é muito legal ver cantoras tão importantes interpretando com louvor músicas de um compositor novo, arriscando cantar canções de alguém que ainda não é tão conhecido pelo grande público. Zé Manoel é um gás novo, um respiro genial na nova música brasileira.
A ESCOLHA DE ÁLVARO LANCELLOTTI
É um disco que me identifico muito. Pela delicadeza das melodias, pela beleza dos arranjos. É a Bahia que balança suave, Jorge Ben com Dorival. Guarda ali a influência do recôncavo, uma instrumentação sofisticada, crua, original. Capinan ainda canta bonito sobre essa cama toda. Deita e rola.
A ESCOLHA DE KIKA
Vários discos incríveis esse ano, fico pensando em cada um dos que preciso excluir e sinto. Mas acontece que fiquei muito emocionada com o “Barriga de 7 janta” do Meno Del Picchia. Acho lindo como as músicas estão amarradas na mesma estória, dá uma sensação parecida com a leitura de um livro. Eu sem saber estava com saudade dessa poesia brasileira que brinca com sentimentos muito fortes em um ambiente meio incômodo para a dor, que é uma certa beleza leve e natural que está em tudo. Parece o mesmo que sinto em “Domingo no Parque”: ao lado de uma tragédia aquela alegria indiscreta. Ou um mal estar que procura explicações enquanto caem serpentinas, explodem casulos de algodão. A eterna ironia de ser feliz ou triste, de pertencer ou não a algum lugar qualquer.
Eu penso muitas vezes por dia nas pessoas que moram na rua, nas pessoas que são tão pobres que acabam levando a culpa da desordem das cidades. Eles ficam de prova a cada esquina lembrando que está tudo errado. Mesmo que a gente se sinta na era de aquário, com todo salto tecnológico e filosófico que presenciamos eles ainda estão ali na contra-mão atrapalhando o tráfego – está tudo errado e “se alguém te atropelar a culpa é sua”. São momentos de identificação profunda durante o disco. Simplesmente por sermos brasileiros todo um universo nos envolve e está em todos esses violões, nessa voz maravilhosamente rústica do Meno, nesses ritmos que dizem tudo que sentimos desde antes de nascermos. Somos traduzidos por essa música e por essas palavras desde o inconsciente, como um sonho de um poeta modernista que já esteve nessa guerra, que sabe o “peso das moedas”, mas “não carrega rancores”. Em vez disso “tira um samba, vive de mágica”.
A ESCOLHA DE AÍLA
O álbum Banzeiro é o grande disco do ano pra mim. É o segundo disco de Dona Onete, essa artista incrível do Pará, grande compositora e ícone da nossa cultura brasileira, que aos 72 lançou seu primeiro disco, e agora aos 77 está no auge. Banzeiro é maravilhoso, cheio de suingue e calor. Reflete demais o clima da Região Norte, tem bolero, tem lundu, tem carimbó, tem bangüê, e foi produzido pelo grande Pio Lobato, guitarreiro e pesquisador de Belém. Nos arranjos dá pra sentir um clima de “ao vivo” na banda, pois são os mesmos músicos que circularam bastante com Onete nos anos anteriores, e isso esquentou a equipe e entrosou geral. A tipografia do design do disco é massa também, toda feita com letras de barco da Amazônia. Super recomendo. Dona Onete é necessária, é ousada, é faceira, é transgressora, desde sempre.
A ESCOLHA DE DANIEL MEDINA
“Quem vem de outro sonho (já nem tão) feliz de cidade”, se depara com uma realidade musical paulistana singular. Por ano, é impressionante o montante de discos que se produz, de álbuns que se faz, porém, o que de fato reluz? Pra mim, surpresa prazenteira, ao fim deste 2016 emblemático, foi “Sol”, disco de Gustavo Galo. Em mais uma produção musical de belezas, o nome de Gustavo Ruiz. Galo, junto a parceir@s como Iara Rennó, Gustavo Cabelo, Júlia Rocha, Marcelo Segreto, apresenta o apreço pela palavra. A cada canção a delícia da sílaba, o deleite da Língua, o ensejo do desejo. Entre o canto e o sussurro, doce e serena, a voz do artista nos conduz por um disco de arranjos ora sucintos, ora sonhados, precisos, necessários. Em dia cinza, banhar-se sob o sol de Gustavo.
A ESCOLHA DE CAMILA GARÓFALO
“Tropix” seduziu meu coração. Eu, que já era apaixonada por Céu, meu céu desabou nesse disco. Chorei ao vestir camisetas ao contrário. Chorei ouvindo “Perfume do Invisível” enquanto regava as plantas que ali secavam. É certo que toda essa passionalidade que ela declama no disco me deixa verdadeiramente preocupada com sua forma de amar, um amor pixelado é um amor aumentado, muitas vezes embaçado, e eu sei que ela é mais forte que isso. Pra mim, a Céu é firme como o chão e pode encontrar outras temáticas em seu próximo disco que escancare seu poder de decisão. Ainda assim, pra mim, é o melhor disco do ano pois a posiciona nessa fase de transição, em que está prestes a despertar e enxergar além, até onde a vista alcança.
A ESCOLHA DE EDU BARRETO [CORONEL PACHECO]
Achei esse ano legal demais pra música (pelo menos isso, né) e melhor ainda pra música brasileira, que é o que tenho acompanhado mais de perto. Entre tanta coisa massa que foi lançada, meu voto de favorito do ano vai pro “Duas Cidades”, do BaianaSystem, por três motivos:
1) A sonoridade pesada do eletrônico com dub e percurssão, junto com levadas de reggae, música latina e riffs dançantes de guitarra baiana é muito especial. O disco une canções emblemáticas, experimentação e improviso com muita naturalidade;
2) Duas Cidades é um álbum que você ouve uma vez e identifica muita coisa que está acontecendo no Brasil (mesmo tendo como foco a cidade de Salvador). Quem ouvi-lo daqui dez anos terá um ótimo retrato dos dias de hoje;
3) BaianaSystem é música popular, música de carnaval. No show deles dá pra pular, cantar, gritar e abrir roda. O “Duas Cidades” me traz toda essa energia e consegue ser muito mais que um disco de música que poderia ser considerada alternativa.
A ESCOLHA DE OTAVIO CARVALHO [VITROLA SINTÉTICA]
Marilina é uma artista argentina que conheci nesse ano através de seu segundo disco, Sexo con modelos. É um disco muito maduro e muito bem produzido. Marilina canta muito bem e com um punch incrível! As composições, arranjos e sonoridade me pegaram. É um disco que tenho ouvido em looping nos últimos meses.
A ESCOLHA DE JULIA VALIENGO [TRUPE CHÁ DE BOLDO]
O Negro Leo é um artista que abriu a minha cabeça quando conheci os seus trabalhos anteriores. “Água Batizada” é um disco daqueles que não canso de ouvir. Seus vocais e guitarras choronas a la Connan Mockasin trazem uma psicodelia ao disco, e casam muito bem com os temperos de samba. Uma união cuidadosa da loucura com a delicadeza. É um disco mais pop, sem deixar de fora a autenticidade e mistério que são tão peculiares ao Leo.
A ESCOLHA DE BRUNNO MONTEIRO
Bowie conseguiu ser único até na hora da sua morte, nos presenteando com o fantástico Blackstar, onde ele mais uma vez se reinventou. O disco por si só já traz uma sonoridade bem diferente de tudo que ele já fez, com o camaleão usando bastante o saxofone, que foi o primeiro instrumento que ele aprendeu a tocar. Ele recrutou a banda no 55 Bar, um famoso clube de Jazz em New York’s West Village, e também faz uso de muitos recursos eletrônicos, ou seja, como sempre usando uma combinação de diferentes estilos para criar o dele, e sempre na vanguarda. Mas o mais interessante é a união das expressões artísticas que ele consegue fazer, com os clipes de Blackstar e Lazarus, onde ele já anuncia a morte que estava por vir. Bowie é um artista completo que teve uma morte completa.
A ESCOLHA DE LG LOPES
O grande disco de 2016 pra mim é o “Ó”, da Juliana Perdigão. Porque sou fã incondicional da Juliana que canta & toca & interpreta & da sua refinada concepção de música e arte, desde os tempos em que ela tocava conosco no Graveola e dividíamos colchonetes e bancos de van pelas rodovias desse Brasil & around the world. Porque o canto da Ju tem uma fineza única e uma ironia mágica, e ativa campos líricos e oníricos profundos e psicodélicos com propriedade e elegância raras. Adoro. Porque a banda que toca com a Ju é fodona, um time improvável e singular, e ela tem essa coisa meio Miles Davis de fazer uma curadoria fina dos músicos e do repertório e tudo e criar um resultado único e estranho e por isso mesmo maravilhoso e que abre caminhos. Porque o disco é a tradução dessas multiplicidades, Haroldo de Campos & Zé Celso, Minas & Gerais, Yes & Genesis, Fela Kuti & Alcova Libertina, neoconcretismo & bonecas infláveis, tudo num mix muito particular e maroto que é a marca registrada da Ju. Maravilhas desgrenhadas, aterradora e caótica beleza. Ó! De jóia.
A ESCOLHA DE MENO DEL PICCHIA
Bombas atômicas, bebês nascendo, por do sol, sexo, amor, manos, nomes, lágrimas, dores, gozos, Sufjan Stevens com Luiz Melodia, Minas com São Paulo, lágrimas, femininos totais carnívoros, masculinos doces sedentos, são signos e palavras que me vem à cabeça pra ilustrar as sensações que “O Meu Nome é Qualquer Um” desperta. O disco foi composto e gravado rapidamente, em 6 meses, na YB em São Paulo. É fruto do encontro de Romulo Fróes com César Lacerda apimentado pelos arranjos melódicos-libertários de Rodrigo Campos. Arriscando uma musicológica-poética do disco, diria que ele sintetiza os espectros básicos de frequências com sua instrumentação crua e densa: o grave doce e paterno de Romulo, o médio afiado e sedutor de César, os agudos dos violões de aço e do cavaquinho psicodélico de Rodrigo Campos.
A ESCOLHA DE ALOIZIO MICHAEL [ALOIZIO]
Foi um ano maravilhoso de lançamentos nacionais e internacionais, mas é preciso deixar este troféu na mão de Céu, Pupillo, Hervé Salters e toda equipe Tropix. O disco é cheio de personalidade, com timbres que mesclam futuro/passado e letras intensas e atuais. Lembro que a primeira vez que dei o play no disco andando por Pinheiros, eu dava repeat em algumas canções só pra voltar em algum timbre, alguma palavra, alguma virada. Céu elevou o nível da produção musical brasileira com esse álbum synth-pop-tropical-dançante. E a voz dela? Ahh a voz dela…
A ESCOLHA DE NICOLE PATRÍCIO [ALAMBRADAS]
Decidi falar de um álbum e de um EP que, para mim, estão entre os melhores do ano (minha lista mental é muito maior do que posso escrever aqui): “Princesa”, do Carne Doce, e “Sonho de Cachorro”, do Fábio de Carvalho. A particularidade de cada um é o que me chamou a atenção: enquanto o “Princesa” vai com o dedo na ferida do quanto a gente, que é mulher, precisa provar o que faz um milhão de vezes – quiçá, por um milhão de anos – o “Sonho de Cachorro” tem uns momentos específicos da infância e pré-adolescência do Fábio que dizem muito sobre a minha, também. “Falo” e “Ana” foram, muito provavelmente, as músicas que mais cantarolei enquanto trocava de roupa pra ir pro trabalho; acho que prova de escolha maior, não há.
A ESCOLHA DE ENZO BANZO
A pergunta é muito difícil. De cara, me vieram alguns discos na cabeça: Ó, da Juliana Perdigão; Sol, do Gustavo Galo; Lâmina, do Felipe Antunes. Tenho uma relação afetiva forte com todos esses discos. Mas o pensamento aqui é, acima de tudo, pelo valor estético. Mas, sem querer ser corporativo, por mais que pareça, vou ficar com o Carniça, do Danislau, também cheio de valores estético-afetivos. O interessante de Danislau – e isso nasce com sua faceta de escritor – é seu poder de ser inventivo e comunicativo ao mesmo tempo. Danislau não fala de um outro mundo da cabeça do poeta. Fala desse mundo aí mesmo, que passa na rua, que passa na TV. Os ícones pop surgem com naturalidade: o carnê do telefone celular, as sacolas do Carrefour, o pastor pentecostal (que já virou personagem de massa), os Datenas da TV. E cada verso, direto, é uma construção consciente e impactante.
A ESCOLHA DE RUY SPOSATI [RUSPO]
Quando ouço Dona Onete, acho que me sinto como um gringo ouvindo música brasileira: palmeiras imaginárias e um calor danado; gosto de açaí e cheiro de pitiú (não é que seja agradável, propriamente). É um disco vivo, contemporâneo; mas trabalhado num mundo purpurinado, de luar, pirarucu, piracuí, do Salgado, do bacalhau de Santarém, de ilha. Comida, beijo, rabeta, pimenta de cheiro e rola do boto; voadeira até uma praia que só aparece numa certa parte do ano. Duas estações: quente com chuva e quente sem chuva. E margem de rio – pra mim, que sou de São Paulo, os rios me pareciam um equívoco, um fio de água atrapalhando o trânsito; margem de rio é avenida. Ali é caminho, é estrada. No Pará descobri que não entendia nada da vida, a começar pelo um milhão de línguas que um monte de gente fala e eu não tinha nem ideia.
Dona Onete é a música deste entendimento, é reforço de uma vontade que vem de uma vida outra: eu, gringo, com medo de banzeiro no rio Xingu, tomando uma comendo peixe no Ver-o-peso, com aquelas bicicletas de som vendendo CDs de música abolerada, ouvindo com apreço as conjugações em segunda pessoa cheias de corretude; tentando entender os guaribas misteriosos urrando na floresta, ou um pescador contando de assombração e fachos de luz atazanando gente na vila de beira de rio. É eu, envergonhado, estático, xavecando mulheres naquela pista lotada de gente dançando carimbó alucinado na Casa da Seresta, em Altamira, trombando os índios e peões de obra na balada, chapando de Black Stone com energético. É menos memória de viagem, e mais: comi de tudo, mas vivo numa tristeza só; no meio de um pitiú que não é o do cheiro de peixe, querendo outra coisa. Essa coisa que a Dona Onete – sem um pingo daquela pentelhação exógena de quem não viveu com estas coisas ao redor – endereça suntuosamente, com 78 anos, sentada na ponta do barco, com o olhinho espremido. Pau a pau com o disco do Sabotage.
A ESCOLHA DE FERNANDO TEMPORÃO
2016 foi um ano de grandes discos. Isso não é exatamente novo na medida em que a música brasileira segue, anos após ano, com uma força violenta, entre pedras e espinhos. Eu teria uma lista grande de excelentes escutas em sugestão, mas acho que ‘Princesa’ do Carne Doce merece destaque.
Gosto muito da sonoridade do grupo, desde o disco de estreia, acho que as letras são melhores do que o que se tem feito no geral. Mas o que me interessa demais é o fato de que não existe necessariamente, no trabalho da banda, uma prevalência em destaque dentro dos aspectos mais explícitos do que seria uma banda de rock: vocais, letras, som da banda. A vocalista e letrista do grupo tem uma voz estranha, agressiva, bonita. O som é estranho, agressivo, mas é leve, explicado, delicado, as melodias são envolventes. As letras da Salma, como disse anteriormente, são bem elaboradas e falam em muitos momentos sobre o que precisamos falar em 2016: as questões da mulher. Isso dá ao ‘Princesa’ uma cara multifacetada, irônica…nada chama a atenção, tudo chama a atenção. Existe uma beleza contemporânea, despreocupada, inocente. Ouvir o Carne Doce tem sido instigante porque os ritmos impostos pelo disco estão sem pressa e sem pretensão. Por isso me conquistam desde sempre. Eu destacaria “Sereno” e “Princesa”.
A ESCOLHA DE JAIR NAVES
O disco que marcou meu 2016 foi “22, A Million”, do Bon Iver. Não digo que foi exatamente o melhor do ano, mas certamente o que me acompanhou mais durante os turbulentos últimos dozes meses. Creio que é um título que traduz muito bem a época que estamos vivendo: a poesia intrincada e aparentemente desconexa, como se não houvesse tempo para completar um raciocínio mais profundo antes que outro pensamento o interrompa. Uma espécie de caos sonoro, a pesada interferência da tecnologia nas emoções, a ansiedade constante e interminável, a angústia causada por um estilo de vida radicalmente diferente do que tínhamos há dez ou quinze anos… enfim, mesmo por ser um registro confuso, cheio de imperfeições, mas extremamente humano e sentimental em meio a uma tecnologia retratada por incontáveis programações, efeitos e sintetizadores, acredito que esse trabalho do Justin Vernom é o mais fiel retrato de como 2016 será lembrado.
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artes | marina malheiro