Há quatro anos atrás, quando o Azoofa começou a dar as primeiras engatinhadas, tinha como proposta principal centralizar em um portal o maior número possível de shows que acontecem na capital paulista, de maneira democrática que abrangesse diferentes estilos musicais e bandas de diferentes “tamanhos”, procurando fortalecer o circuito musical da cidade. Com essa idéia, imaginávamos que conheceríamos grandes músicos, contatos profissionais e tudo mais incluso no pacote startup, mas não pensávamos que iríamos conhecer tantos parceiros talentosos desse lado da cortina, uma galera que começou na mesma época que o Azoofa e compartilha de uma visão semelhante em relação à música.
A Navegar Comunicação, agência capitaneada pelos parceiros Eduardo Lemos – colaborador do Azoofa desde os primórdios – e Rafael Michalawski, nasceu com o intuito de fomentar projetos culturais, especialmente voltados para a música, cuidando da assessoria de comunicação até produção de shows. E no momento em que a palavra “show” faz parte de seu dia a dia – mas sempre afastada de você pela tela do computador -, ela ecoa no seu subconsciente e logo passa a ser ressignificada, deixando de ser só palavra e tornando-se missão; assim, com pessoas talentosas, músicos talentosos e a vontade de fazer acontecer, eis que “show” sai do papel.
Agora, a Navegar embarca em novas águas e anuncia seu primeiro festival, o Navegar Noites Musicais, que acontece na FLIP (Feira Literária Internacional de Paraty) deste ano. De 27 a 29 de julho, Daniel Medina, Felipe Antunes (Vitrola Sintética) e LG Lopes (Graveola) vão se apresentar dentro da Casa do Papel, da editora Lote 42, com entrada gratuita, além de discotecagem do DiMangaba todos os dias. E pensando nesse relacionamento entre música e literatura, os três artistas falaram um pouco sobre a influência de livros e autores em suas respectivas obras.
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Qual é a tua relação com a literatura? lembra dos seus primeiros contatos com livros?
Daniel Medina: Comecei tarde a ler com prazer. Depois de todas as obrigações escolares, somente por volta dos dezesseis me vi envolvido de fato pelo elo da leitura. Chafurdando as estantes de um tio carioca dei de cara com “Chega de Saudade – A história e as histórias da Bossa Nova”, do Ruy Castro. Ali, pela primeira vez, lia algo que falava pra mim e sobre o meu universo imediato. Foram muito os universos que se revelaram na sequência. Em poesia, Drummond, Vinícius, Cecília e Manuéis, Bandeira e de Barros. Passei a prosear com Garcia Márquez, Oscar Wilde, Júlio Cortázar. Todo livro é porta para o próximo, todo livro é porta para o todo.
Felipe Antunes: O único livro lá da infância que consigo me lembrar agora é o “De onde viemos”, esse clássico infantil que explica homem, mulher, sexo, gravidez, bebês e etc. E mais adiante, já na fase da escola e dos livros que faziam parte do currículo, me lembro de ficar impressionado com os poetas da métrica, do estudo que eles faziam com relação a isso, como, por exemplo, João Cabral de Melo Neto e Luís Vaz de Camões. Acho que João Cabral trouxe, apesar de não ter tido gosto por música, muito da possibilidade que hoje desenvolvemos em forma de prosa poética nas canções. Não só de hoje, mas creio que muitos dos que hoje desenvolvem suas histórias de forma poética, e principalmente se valendo de temáticas reais, devem, direta ou indiretamente, ter tido influência de sua obra. E em “Os Lusíadas”, Camões constrói mais de 1000 versos de estrofes decassílabas, e com esquemas rímicos muito bem definidos. Essa capacidade de conexão me instigava muito.
Luiz Gabriel Lopes: Quando criança, fui um ávido consumidor de revistas em quadrinhos. Turma da Mônica, Asterix, Tintim… vivia rodeado disso. Um pouco mais tarde, achei num velho baú lá de casa uma coleção empoeirada do Sítio do Picapau Amarelo, mergulhei naquilo… e mais tarde um pouco, aquela onda mais infanto-juvenil, Coleção Vaga-lume. Era uma prática que eu curtia, ficar ali horas a fio. Lembro que cheguei a fazer parte de um grupo de correspondência – olha que viagem, isso nos anos 90, não tinha internet ainda – que a gente ficava escrevendo cartas pra uns amiguinhos desconhecidos de outras cidades, falando sobre livros! Hehehehe. Portanto, sim, os livros sempre foram uma presença forte na minha vida. Mais tarde um pouco veio o contato com a “grande literatura”, aí uma porta se abriu. Lembro de quando li “Memórias Póstumas de Brás Cubas” pela primeira vez, foi chapante. Depois veio Jorge Amado, Drummond, Oswald de Andrade… muita coisa.
Qual (ou quais) obra(s) literária(s) serviram de inspiração [ainda que indireta e subjetiva] para você na hora de compor e de criar seu universo musical?
Daniel Medina:Foram muitas as obras que me marcaram e me impeliram a compor. Foi muito vigoroso meu encontro com Walt Whitman e suas “Folhas de Relva”. “Nós Ao Vivo”, canção de minha autoria, é um tanto reflexo desse encontro. “Faz escuro mas eu canto”, obra do poeta amazonense Thiago de Mello, também teve parte nessa cria. Outra literatura fundamental, além da prosa e da poesia, foi a dramática. O contato com a dramaturgia de nomes como Luigi Pirandello, Bertolt Brecht e Samuel Beckett, me deu ferramentas e repertório para a construção das minhas canções.
Felipe Antunes: Citei alguns autores bastante estéticos na primeira resposta, porque, além do impacto que senti na época, também formaram uma espécie de cuidado inconsciente. Mas outros desse tempo de escola, como, obviamente, Machado de Assis, foram igualmente impactantes como obra. E extremamente libertadores. A erudição com expansão criativa guiou algo no princípio que ainda me interessa bastante. Em tempos posteriores isso se somou à outras linguagens, e continua/continuará em mutação. Mas a literatura de Campos de Carvalho, Gabriel Garcia Marques, Kafka, Clarice Lispector, etc, me ampliaram bastante os tipos de escrita; além da literatura erótica de Diane di Prima, Hilda Hilst, George Bataille, etc. Diane di Prima me fez compreender muito dos conceitos dos “beatniks”, a preservação máxima do sentimento e da verdade de onde eles vêm – sem o aprisionamento da erudição. Enfim, todas essas coisas se comunicam de alguma forma, mas confesso que o maior aprendizado com todxs esses é a liberdade e o descompromisso com o que já foi feito.
Luiz Gabriel Lopes: Sou muito aberto, gosto sempre de conhecer coisas novas. Leio muita poesia, atualmente mais que prosa. Curto muito a literatura lusófona, me interesso particularmente pelos autores de outros países, que escrevem em língua portuguesa. Acho que é uma seara muito rica, e me inspira muito, esses outros usos da língua. Mia Couto, José Saramago, Maria Gabriela Llansol… Tem um poeta português que eu li compulsivamente durante a faculdade: Herberto Helder. Muito da minha visão de arte vem da poesia dele.
E tem um lance legal também que é o fato de que o nome do meu último disco (“O Fazedor de Rios”) vem de um capítulo do “Terra Sonâmbula”, um belo romance do Mia Couto. É um personagem tido como louco, porque está cavando uma região árida em busca de um rio. Ninguém acredita nele, mas no final ele acaba encontrando um veio d’água, e vai embora junto com ele. Me pareceu uma imagem forte, desse lance de cultivar as utopias… tem muito a ver com o que me move na caminhada da arte.
Recentemente, um compositor venceu o prêmio Nobel de Literatura. isso chamou a atenção para o fato de que letras de canções habitam o mesmo mundo da poesia. O que você pensa sobre isso?
Daniel Medina: Não há dúvidas de que letras e poemas comunguem de inúmeros aspectos do poético, da poesia. A questão central para diferenciação tem girado em torno de independência ou interdependência, sendo a primeira creditada ao poema, e a segunda à letra de música, tendo em vista a relação letra-melodia. Tenho apreço pela declaração de Adriana Calcanhotto sobre essa querela em um documentário intitulado “Palavra Cantada”, de Helena Solberg. Adriana diz algo como:” – Não tenho paciência para essa questão.” Também me estimula pouco o anseio por onde começo um, onde acaba a outra, apesar de conhecer e respeitar vários estudos nessa área. Quanto ao Nobel, parece que a Academia Sueca também perdeu a paciência.
Felipe Antunes:De fato, confirmou a proximidade entre as linguagens. Acho que estão muito próximas mesmo, porém talvez a música radicalize a “musicalização” que a poesia já tem. Talvez a explicite, mais do que crie. De qualquer forma, apesar da admiração por Bob Dylan e de saber da importância de vê-lo em posições de referência, fico pensando se não suprime um pouco do espaço já reduzido da literatura. Mas, ao mesmo tempo, se foi para o Nobel propor/esclarecer a proximidade, ou até a mescla, entre literatura e música, Dylan certamente foi uma ótima escolha.
Luiz Gabriel Lopes: Acho muito massa. O Dylan merece muito essa. Eu particularmente vejo algumas diferenças entre o mundo da canção e o da poesia, mais precisamente pelo fato de que tem um mistério na letra da música que é a maneira como se entoa, a melodia, o ritmo, que também carrega um milhão de significados. Tem uma alquimia maluca ali, algo do indecifrável mesmo. Já o universo do poema tem outros lances, tem a coisa da palavra escrita, da disposição gráfica do texto. Uma cultura mais ligada ao livro, né? Mas é claro que é massa que bons letristas sejam reconhecidos no universo da literatura. Me parece importante que haja essa interseção, uma contaminação positiva entre as áreas.
Por fim: você está lendo alguma obra nesse momento? Se sim, qual é e o que está achando?
Daniel Medina: Atualmente tento conciliar leituras paralelas, na qual cada obra vai caminhando a seu tempo. No momento alguns livros disputam lado a lado minha atenção e a reta de chegada, ora propositalmente longínqua, ora distante por paradas forçadas. São elas Paixão Segundo G.H, de Clarice Linspector, Ecce Homo, Nietzsche, e uma antologia do poeta Rainer Maria Rilke. Sobre esta última, Rilke foi um poeta que descobri na adolescência. Seu vigor poético e a tensão entre imanência e transcendência, que desponta na jornada de seus versos, foram e são um presente pra nossa espécie.
Felipe Antunes: Em algumas fases me concentro num livro só, mas em geral acabo pegando mais de um e seguindo com eles. Agora estou com os livros: “Sobre Fotografia”, de Susan Sontag, “O irmão alemão”, de Chico Buarque, contos e poemas de Vinicius de Moraes que estão em uma nova compilação chamada “Todo amor”, “Primeiras Estórias”, de Guimaraes Rosa, “Ladainha”, de uma poetiza contemporânea chamada Bruna Beber e “Rita Lee – uma autobiografia”, de Rita Lee. São todos ótimos, acaba sendo um passeio por gente de muita autoralidade. Os estilos se cruzam, mas têm muita personalidade na coisa toda.
Luiz Gabriel Lopes: Ultimamente eu tenho lido várias coisas ao mesmo tempo. De poesia, tenho convivido bastante com o “Vida Submarina”, da Ana Martins Marques, o “Canção da Liberdade” da Jade Rainho e o “Não Para Consolar”, do Max Martins. De prosa, tô lendo lentamente o “Viagem para Ixtlan”, do Carlos Castañeda. São coisas muito diversas, é um mosaico maluco, hehehe. Mas todos acabam povoando meu imaginário de maneira muito nutritiva.
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