Chico César é um ser político. No mais amplo e nobre sentido da palavra. Em “Estado de Poesia”, o disco que ele lançou no final do ano passado, o flagramos músico, compositor, dono de canções que, antes, são mensagens, às vezes diretas, como em “Reis do Agronegócio” ou “No Sumaré”, às vezes subliminares, como na faixa título.
Chico César é um ser político. E não só quando é artista, mas também quando é plateia. Porque foi assistindo a um espetáculo do Teatro Oficina que ele teve a ideia de criar um show especialmente para o espaço comandado por Zé Celso Martinez, e reverter a renda para o próprio Oficina. Nascia “Oficio Cio Sina”, apresentação que acontece todas as quartas-feiras do mês de março. Nele, Chico é acompanhado de atores do Oficina, num espetáculo em que, munido de voz e violão, revisita clássicos do seu repertório e mostra canções do novo disco (saiba mais sobre o show aqui).
Chico César é um ser político, mesmo depois de deixar o cargo de Secretário de Cultura do Estado da Paraíba, no final de 2014. Em seus perfis nas redes sociais, Chico não se furta a opinar sobre política: defende Lula, critica as recentes manifestações e, mesmo fazendo críticas ao governo, mantém-se contra o impeachment de Dilma Rousseff.
Em entrevista exclusiva para o Azoofa, Chico César fala sobre a temporada de shows no Oficina, diz que a disputa pelo espaço urbano é um dos temas urgentes de São Paulo e critica as manifestações de domingo. “Comigo é papo reto. Eu não aliso”.
AZOOFA: Chico, como rolou a ideia de fazer um show em prol do teatro Oficina? E depois, o que te levou a fazer dele uma temporada?
Chico César: A ideia rolou já enquanto eu assistia a apresentação solo que Zé Celso fez para arrecadar recursos pro Teatro. Ali, pensei: eu também posso fazer. Ao oferecer a minha vontade de fazer, percebi uma certa resistência da parte dele com relação a que acontecesse “mais um show de música”, que não levasse em consideração todas as possibilidades espaciais e conceituais do lugar. Então, quando eles aceitaram, através de minha mulher Bárbara Santos (que também é atriz e participa do espetáculo), os convidei para que participassem de “Ofício Cio Sina” recitando textos de meus três livros ou mesmo algo que viesse do repertório deles. Acabamos focando nos meus livros mesmo. Ao fim do primeiro dia de apresentação, que foi beneficente, estávamos todos muito emocionados e empolgados com o resultado. Resolvemos ali mesmo que entraríamos em temporada todas as quartas-feiras de março.
Neste show você se apresenta em voz e violão, um formato com o qual você se dá muito bem. Essa escolha te deixa mais livre no palco? No sentido de você ser “dono” do andamento do show e do repertório?
O palco, na verdade, é todo o espaço do Oficina. E, apesar de ser voz e violão, é bem rigoroso no repertório, pois as canções estão coladas aos poemas. O andamento não tem “dono”. Toda variável é importante para a química de cada noite: o público, os atores, eu mesmo. Tem sido um aprendizado muito bonito para mim.
“Estado de Poesia”, o disco e o show, receberam críticas muito positivas até aqui. Como você vê esse momento atual da sua carreira? Sinto uma espécie de encontro da maturidade com a ousadia…
Eu me sinto muito inteiro, muito comprometido com o que estou fazendo e com a minha percepção de nosso tempo. Isso resulta em minha música, no modo como escrevo e num certo “desprendimento” na hora de levar pro palco. “Estado de Poesia” me recolocou à frente de uma certa “virgindade”, no sentido de estado de pureza original, de um “nada a perder” que o artista tem quando está começando. Com esse disco, eu estava recomeçando. Ousado, pois não há tempo a perder. E maduro, no sentido de que tenho muitas vivências como artista, como pessoa, até como gestor público. Ao mesmo tempo que sinto que temos de encarar a vida, a carreira e o próprio ato de subir ao palco como “low profile”, também há um sentimento de urgência. Temos de aproveitar cada segundo para sermos sinceros conosco mesmo. Radicais nessa sinceridade, até. E amorosos. Esse sentimento de amor pela importância de tudo tem me conduzido.
Numa entrevista ao UOL, você disse que quando compôs “No Sumaré”, você percebeu que tinha se desligado do Chico secretário de Cultura do Estado da Paraíba e “voltado” a ser compositor. A atuação política te deixou um pouco longe da música?
O fato de estar na Paraíba foi o que gerou Estado de Poesia, não há como negar. A atuação à frente de um cargo público, uma atividade não artística, me fez ver como a atividade artística é importante em minha vida, e como devo abraçar radicalmente esta atividade. A vida de artista me faz muito feliz, uma pessoa mais em paz com suas incompletudes, e que se completa com o outro na comunicação com o público. O gestor luta com o entrechoque de uma demanda plural e intensa, ao mesmo tempo que dispõe de poucos recursos para atender essas demandas. É angustiante mas faz a gente crescer. Ter ido pra esse papel, na verdade, no frigir dos ovos, acabou me tornando mais inseparável da música. Quando estava lá, eu compunha, mas não tinha tempo de gravar disco. Por isso, o material foi se acumulando, adensando, sem o compromisso de ter de preparar um disco em curto prazo.
Você voltou a morar em São Paulo recentemente. O Teatro Oficina está lutando, há algum tempo, para que 3 prédios não sejam construídos logo ao lado do teatro. Essa luta é simbólica sobre o quanto a cidade vem sendo massacrada pelo poder imobiliário, e o quanto espaços culturais continuam fora das prioridades da classe política. Como é a sua relação com esse aspecto da cidade, em que a memória arquitetônica e, portanto, histórica, está sempre a serviço de interesses econômicos?
Uma das lutas mais importante de nosso tempo, do ponto de vista político, é a disputa pela cidade, pelo espaço urbano. É saber e determinar quem e com que interesses vai ocupar esse espaço. São Paulo vive isso agora de um modo bastante radical na discussão sobre a questão das ciclovias, sobre a diminuição da velocidade dos automóveis, de um certo repensar no zoneamento da cidade, da chegada do Uber na disputa com o táxi. Pessoalmente, observo que quando cheguei em São Paulo em 1985, havia três ou quatro bares na Vila Madalena. Agora é difícil saber o que não é bar ali. Tudo bem: há lugares vocacionados para a boêmia e para a vida cultural. Mas e quem morava já ali e ali criava seus filho? Como fica? Logo que cheguei me hospedei na rua Aspicuelta. Era lindo e romântico o entorno. E agora o que temos? É cada vez mais importantes que o cidadão comum participe das discussões sobre a cidade que queremos. Penso que é fundamental ter mais parques, mais ciclovias, mais praças, mais espaços coletivos para fruição de todos.
A periferia de São Paulo, há tempos, vem se organizando de maneira criativa e original no que se refere à cultura. São saraus de poesia, shows e teatro e um crescente retorno de público. O que o centro da cidade tem a aprender com a periferia sobre viver de cultura?
O centro da cidade já tem mostrado que não perdeu esse bonde. É aqui que muitos jovens estudantes e artistas tem vindo morar, em prédios antigos com condomínio mais barato. E muitos bares e restaurantes também tem vindo se instalar ali, para chamar as pessoas de volta pro centro. No centro estão escolas importantes de teatro, clubes, casas noturnas. Essa vida não pode ser ignorada, pois ela pulsa e tende a haver um choque entre um certo púbico letrado, que se considera “descolado”, e o povo da rua, que vive nela e tira dali o seu sustento. Na hora que tudo se juntar, se encaixar, o centro ganhará de fato um novo e democratizante impulso.
Você é um dos artistas mais transparentes em relação a posicionamento político. Vejo que você sempre opina sobre os fatos nos seus perfis em redes sociais. Como é o diálogo com o público virtual sobre esses temas às vezes complexos e espinhosos?
Comigo é papo reto. Eu não aliso. Eu me posiciono, sabendo de cara que muita gente vai discordar. Apenas procuro colocar minhas opiniões políticas e sociais de modo mais restrito a minha página pessoal. E deixo a fanpage restrita aos assuntos artísticos.
Em “Reis do Agronegócio”, a música tua e de Carlos Rennó faz uma crítica direta e reta aos desmandos e crimes dos “produtores de alimento com veneno”. Como você vê o nosso Ministério da Agricultura ser comandada por Kátia Abreu, notória defensora dos ruralistas?
Acho que esse é um dos maiores equívocos de Dilma Rousseff. É uma visão atrasada essa de produzir alimentos em larga escala destruindo a natureza e envenenando as pessoas. A longo prazo os custos serão altíssimos. Sem falar no custo social imediato. A formação de governos, em busca da governabilidade, torna “frankenstein” muitas gestões. Falta um aceno claro para a sociedade sobre a direção que um governante quer seguir. Um país como o nosso tem potencial para investir na agricultura familiar e, por outro lado, investir em novos modos sustentáveis para produzir alimentos.
No domingo tivemos uma grande manifestação que pede a saída de Dilma Rousseff da presidência e clama pela prisão do ex-presidente Lula. No Facebook, você compartilhou matérias críticas ao movimento. Esquecendo um pouco as besteiras ditas por radicais e estúpidos, você enxerga um lado bom dessas manifestações?
Sinceramente, eu não vejo nada bom nessas manifestações contra a corrupção e comandadas por corruptos daqui e financiadas por corruptores de fora. Talvez pudéssemos considerar bom o desmascaramento de muitos desses manifestantes que assumem seu fascismo, sua intolerância, sua ira pela perda de privilégios. Mas todos buscam disfarçar que estão lutando contra a corrupção. Não estão. São tendenciosos e estão aliados a gente ligada a aeroportos suspeitos, helicópteros cheios de cocaína, envio de dinheiro para contas de amantes no exterior por vias ilegais. O que pode haver de bom nisso? Sinto falta de uma certa maturidade que aponte aqui dentro para a assunção de novos movimentos, desligados do maniqueísmo partidário em que estamos metidos.
O que você diria para um jovem com simpatia pelas lutas ligadas à esquerda, mas que está desapontado com os rumos do governo do PT?
Creio que esses jovens que ocuparam as escolas em protesto contra o desmonte da rede pública estadual de São Paulo é que tem algo a nos dizer. Aprendamos com eles. Os jovens estão ensinando.
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arte | belisa bagiani